Caneta e Papel
Conto

Passageiro 4

Passageiro 4
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“Como lutar contra o medo enquanto se celebra uma coisa boa?” Ou o contrário, “como pensar em fazer mal a alguém que nunca te fez algum mal?” Lurdes perguntava a si mesma. Ela tinha tanta dúvida: como lidaria com essa situação? Como evitaria a rejeição da sua família caso não fosse aceite pelo pai da criança? A difamação que teria de suportar... Estava com a cabeça mergulhada nas perguntas que saltitavam a cada girar de pneu no táxi. Sua mente levou-a para uma realidade diferente a do táxi. Estava consciente da confusão bruta que armara para si mesma. Não era suposto alguém tão jovem estar grávida, muito menos grávida de seu patrão. Lurdes acabara de completar 19 anos há duas semanas e agora sabia que estava grávida de quatro semanas.

Há mais ou menos sete meses Lurdes procurava emprego, desesperada porque sua mãe não tinha dinheiro para pagar a faculdade. Então teria de ficar em casa sem fazer coisa alguma, ou ainda pior, vender peixe com sua mãe. Lurdes detestava o cheiro constante de peixe que sua mãe exalava todas as noites. Não queria o mesmo destino. Apesar de não ser muito inteligente, Lurdes era muito bonita, tinha uma pele morena e cabelos cacheados (herdados de seu falecido pai, um senhor cabo-verdeano). De tanto perguntar às pessoas e perseguir vagas de emprego, finalmente encontrou uma como trabalhadora doméstica. O que não a agradou muito, mas serviria melhor do que as primeiras duas opções: ficar em casa e vender peixe.

No primeiro dia, quando se apresentou aos patrões, a mulher do senhor não gostou nada da ideia. Lurdes era muito bonita e avantajada para trabalhar na casa dela, mas o trabalho apertado de advogada, docente universitária e palestrante não dava espaço à senhora para cuidar de casa. O marido também trabalhava como driller, offshore, numa empresa petrolífera. A senhora ficou um pouco tranquila porque seu marido não teria de a ver todos os dias, até porque trabalhava como formador no tempo que ficava em terra. Com certos questionamentos e pedidos tristonhos da Lurdes, ela conseguiu o trabalho. Duas semanas após o início, o senhor viajou. Lurdes cuidava da casa sem problema algum. A senhora gostava muito dos serviços dela. O tempo foi passando e após 42 dias de serviço, o seu patrão voltou. Lurdes passou a conviver com os dois nas primeiras horas dos dias, e de tarde apenas com o patrão. O corpo esculpido da Lurdes não passou desapercebido do radar de seu patrão, mas não aconteceu nada. Na segunda volta depois de mais uma viagem, seu patrão aproximou-se dela. Os dois começaram uma relação clandestina, marcada por momentos de relações intensas e encontros regulares. Isso durou um mês. Lurdes notou mudanças no humor, cansaço e sonolência. Comprou o teste e fez: foi quando descobriu que estava grávida do patrão.

Lurdes deliciava-se com esses pensamentos inadequados, essas memórias que para ela eram as coisas mais gostosas do mundo. Por instantes não via coisa alguma além do nevoeiro de lembranças e escândalos por vir. As vozes no táxi foram silenciadas. Nenhum dos passageiros, nem o cobrador, nem o motorista, existiam para Lurdes.

Enquanto isso, do outro lado do táxi, o cobrador, já chateado, começou com a cobrança: – “Família, estou a cobrar. Banco da frente!”. Os senhores do banco da frente (assentos dos penduras) esticaram a mão por cima das cabeças e entregaram o dinheiro sem sequer olhar para trás. O cobrador recebeu os valores e reclamou: – “Porra, esse dinheiro bem grande logo de manhã? Assim está bom?”. Os dois passageiros que os entregaram não abriram a boca em protesto; muito pelo contrário, imitaram uma estátua. A cobrança continuou por todo o táxi. Infelizmente, a única distraída ao ponto de não ouvir o pedido constante do cobrador foi Lurdes, que só olhou na direção do outro passageiro (um jovem moreno com uma cicatriz horrível cobrindo toda a bochecha direita): – “Moça, estão a cobrar!”. Lurdes ficou assustada. Pensou logo no suposto perigo que correra durante toda a viagem. – “Como um marginal desse tipo sobe no táxi connosco?” – perguntava a si mesma enquanto vasculhava a mochila que tinha consigo. Colocou-a do lado esquerdo, perto da janela onde estava, sempre com ar de desconfiança. Tolamente, tentava dizer com o rosto esses pensamentos, o que deixou o rosto dela com um aspecto esquisito.

Para a infelicidade de Lurdes, ela entregou uma nota de dois mil kwanzas, o que irritou o cobrador já chateado com as malambas que suportara nessas primeiras horas: – "Mô ;Deus! De novo? Vocês fazem isso por quê?... Vocês dão muita raiva, juro!” – O cobrador vomitou todo o descontentamento que tinha. Mas vozes do fundo do táxi reagiram em protesto: – “Fala bem com as pessoas” e “Não estás a trabalhar com cão, respeita as pessoas que te dão dinheiro” e “Fala mesmo, mãe!”. O cobrador deu favas e recebeu o dinheiro com bastante raiva. Por outro lado, Lurdes nem se importava com as defensoras. Ela só pensava no bebé e na mudança de vida que teria. Finalmente poderia ser chamada de «dona de casa» e «dona do homem» que nem era seu.

No destino final, todos desceram. Uns com pressa, outros com tranquilidade. Lurdes quase desfilava até a casa de seus patrões. Quando chegou, a casa estava agitada como todas as manhãs: a patroa preparando-se para ir trabalhar, o patrão fazia o mesmo. Lurdes esperou a senhora sair de casa. Ela saiu às pressas. O patrão da Lurdes ficou, como de costume. Ambos tinham planos para a manhã e quem sabe o resto do dia. Só que Lurdes tinha outros planos: contar sobre a gravidez. E o fez. Contou ao seu patrão. Porém, a reação foi além do planeado: – “Esse é o teu plano? Fala, sua bandida, sua interesseira, oportunista!” – O patrão disse à Lurdes. Lurdes ficou boquiaberta. Como alguém que jurara amor, descrevera as paisagens de seu corpo dum jeito delicado e carismático, viraria a cara para ela? Como? Lurdes tinha os olhos a arder. O nariz formigava com a temperatura da raiva e decepção que surgia. Mas não parou por aí. Seu patrão continuou com as ofensas: – “Já desconfiava. Estava bom demais para ser verdade. Você é como uma dessas que andam por aí à procura de homens bem-sucedidos para lhes bancar... Espera! Esse filho mesmo é meu?”. Foi a gota d’água para Lurdes. Todos os planos dela desmoronaram naquele momento e, apesar da decepção, nem teve tempo para sentir – foi agarrada e arrastada para fora de casa. Ela olhava triste e incrédula, mas o patrão não se importou. Continuou e dizia: – “Nunca mais volte aqui, nunca mais, sua oferecida!”. E foi jogada para fora.

Lurdes viu seu mundo desmoronar. De joelhos no chão, com a mochila que carregava consigo, levantou e foi a caminhar de volta para casa.

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Elis Zolela

Estudante

Estudante

“Como lutar contra o medo enquanto se celebra uma coisa boa?” Ou o contrário, “como pensar em fazer mal a alguém que nunca te fez algum mal?” Lurdes perguntava a si mesma. Ela tinha tanta dúvida: como lidaria com essa situação? Como evitaria a rejeição da sua família caso não fosse aceite pelo pai da criança? A difamação que teria de suportar... Estava com a cabeça mergulhada nas perguntas que saltitavam a cada girar de pneu no táxi. Sua mente levou-a para uma realidade diferente a do táxi. Estava consciente da confusão bruta que armara para si mesma. Não era suposto alguém tão jovem estar grávida, muito menos grávida de seu patrão. Lurdes acabara de completar 19 anos há duas semanas e agora sabia que estava grávida de quatro semanas.

Há mais ou menos sete meses Lurdes procurava emprego, desesperada porque sua mãe não tinha dinheiro para pagar a faculdade. Então teria de ficar em casa sem fazer coisa alguma, ou ainda pior, vender peixe com sua mãe. Lurdes detestava o cheiro constante de peixe que sua mãe exalava todas as noites. Não queria o mesmo destino. Apesar de não ser muito inteligente, Lurdes era muito bonita, tinha uma pele morena e cabelos cacheados (herdados de seu falecido pai, um senhor cabo-verdeano). De tanto perguntar às pessoas e perseguir vagas de emprego, finalmente encontrou uma como trabalhadora doméstica. O que não a agradou muito, mas serviria melhor do que as primeiras duas opções: ficar em casa e vender peixe.

No primeiro dia, quando se apresentou aos patrões, a mulher do senhor não gostou nada da ideia. Lurdes era muito bonita e avantajada para trabalhar na casa dela, mas o trabalho apertado de advogada, docente universitária e palestrante não dava espaço à senhora para cuidar de casa. O marido também trabalhava como driller, offshore, numa empresa petrolífera. A senhora ficou um pouco tranquila porque seu marido não teria de a ver todos os dias, até porque trabalhava como formador no tempo que ficava em terra. Com certos questionamentos e pedidos tristonhos da Lurdes, ela conseguiu o trabalho. Duas semanas após o início, o senhor viajou. Lurdes cuidava da casa sem problema algum. A senhora gostava muito dos serviços dela. O tempo foi passando e após 42 dias de serviço, o seu patrão voltou. Lurdes passou a conviver com os dois nas primeiras horas dos dias, e de tarde apenas com o patrão. O corpo esculpido da Lurdes não passou desapercebido do radar de seu patrão, mas não aconteceu nada. Na segunda volta depois de mais uma viagem, seu patrão aproximou-se dela. Os dois começaram uma relação clandestina, marcada por momentos de relações intensas e encontros regulares. Isso durou um mês. Lurdes notou mudanças no humor, cansaço e sonolência. Comprou o teste e fez: foi quando descobriu que estava grávida do patrão.

Lurdes deliciava-se com esses pensamentos inadequados, essas memórias que para ela eram as coisas mais gostosas do mundo. Por instantes não via coisa alguma além do nevoeiro de lembranças e escândalos por vir. As vozes no táxi foram silenciadas. Nenhum dos passageiros, nem o cobrador, nem o motorista, existiam para Lurdes.

Enquanto isso, do outro lado do táxi, o cobrador, já chateado, começou com a cobrança: – “Família, estou a cobrar. Banco da frente!”. Os senhores do banco da frente (assentos dos penduras) esticaram a mão por cima das cabeças e entregaram o dinheiro sem sequer olhar para trás. O cobrador recebeu os valores e reclamou: – “Porra, esse dinheiro bem grande logo de manhã? Assim está bom?”. Os dois passageiros que os entregaram não abriram a boca em protesto; muito pelo contrário, imitaram uma estátua. A cobrança continuou por todo o táxi. Infelizmente, a única distraída ao ponto de não ouvir o pedido constante do cobrador foi Lurdes, que só olhou na direção do outro passageiro (um jovem moreno com uma cicatriz horrível cobrindo toda a bochecha direita): – “Moça, estão a cobrar!”. Lurdes ficou assustada. Pensou logo no suposto perigo que correra durante toda a viagem. – “Como um marginal desse tipo sobe no táxi connosco?” – perguntava a si mesma enquanto vasculhava a mochila que tinha consigo. Colocou-a do lado esquerdo, perto da janela onde estava, sempre com ar de desconfiança. Tolamente, tentava dizer com o rosto esses pensamentos, o que deixou o rosto dela com um aspecto esquisito.

Para a infelicidade de Lurdes, ela entregou uma nota de dois mil kwanzas, o que irritou o cobrador já chateado com as malambas que suportara nessas primeiras horas: – "Mô ;Deus! De novo? Vocês fazem isso por quê?... Vocês dão muita raiva, juro!” – O cobrador vomitou todo o descontentamento que tinha. Mas vozes do fundo do táxi reagiram em protesto: – “Fala bem com as pessoas” e “Não estás a trabalhar com cão, respeita as pessoas que te dão dinheiro” e “Fala mesmo, mãe!”. O cobrador deu favas e recebeu o dinheiro com bastante raiva. Por outro lado, Lurdes nem se importava com as defensoras. Ela só pensava no bebé e na mudança de vida que teria. Finalmente poderia ser chamada de «dona de casa» e «dona do homem» que nem era seu.

No destino final, todos desceram. Uns com pressa, outros com tranquilidade. Lurdes quase desfilava até a casa de seus patrões. Quando chegou, a casa estava agitada como todas as manhãs: a patroa preparando-se para ir trabalhar, o patrão fazia o mesmo. Lurdes esperou a senhora sair de casa. Ela saiu às pressas. O patrão da Lurdes ficou, como de costume. Ambos tinham planos para a manhã e quem sabe o resto do dia. Só que Lurdes tinha outros planos: contar sobre a gravidez. E o fez. Contou ao seu patrão. Porém, a reação foi além do planeado: – “Esse é o teu plano? Fala, sua bandida, sua interesseira, oportunista!” – O patrão disse à Lurdes. Lurdes ficou boquiaberta. Como alguém que jurara amor, descrevera as paisagens de seu corpo dum jeito delicado e carismático, viraria a cara para ela? Como? Lurdes tinha os olhos a arder. O nariz formigava com a temperatura da raiva e decepção que surgia. Mas não parou por aí. Seu patrão continuou com as ofensas: – “Já desconfiava. Estava bom demais para ser verdade. Você é como uma dessas que andam por aí à procura de homens bem-sucedidos para lhes bancar... Espera! Esse filho mesmo é meu?”. Foi a gota d’água para Lurdes. Todos os planos dela desmoronaram naquele momento e, apesar da decepção, nem teve tempo para sentir – foi agarrada e arrastada para fora de casa. Ela olhava triste e incrédula, mas o patrão não se importou. Continuou e dizia: – “Nunca mais volte aqui, nunca mais, sua oferecida!”. E foi jogada para fora.

Lurdes viu seu mundo desmoronar. De joelhos no chão, com a mochila que carregava consigo, levantou e foi a caminhar de volta para casa.

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